7 de fev. de 2011

ESTRÉIA:"CISNE NEGRO" COM NATALIE PORTMAN

Por Ricardo Garrido

A menos que você seja um daqueles caras sem a menor sensibilidade artística e sem qualquer interesse por, digamos, cinema, você passará a última meia hora de Cisne Negro como eu -- com o estômago embrulhando e quase arrancando o tecido dos braços da poltrona. O novo filme de Darren Aronofski (de Requiém por um Sonho e O Lutador) é feito para impressionar, e impressiona. Cada aspecto do filme parece vir embrulhado num pacote impecável, laço perfeitamente simétrico e uma pequena etiqueta, onde se lê: perfeição. Do roteiro cheio de truques à fotografia impecável; da câmera invasiva e nervosa perseguindo os personagens nos bastidores de uma companhia de balé à pompa da apresentação no palco do Lincoln Center de Nova York; da trilha sonora grandiosa de Tchaikovski à balbúrdia de uma balada regada a bebida e ecstasy; das atuações anônimas da companhia aos atores coadjuvantes à soberba atuação de Natalie Portman como a prima ballerina perfeccionista e insegura… TUDO grita perfeição. É um filme literalmente de arrepiar.
Tanto virtuosismo, no entanto, não é para todos: certamente há uma enorme parcela do público que não vai suportar um filme sobre balé. Além disso, muitos críticos têm reservas quanto ao filme (que julgam metido a besta e confuso). Bobagem. Cisne Negro merece cada uma das cinco indicações que ganhou para o Oscar (e bem que merecia mais algumas).

Natalie, a Perfeição
É claro que, se há algo que garante o lugar de Cisne Negro na história do cinema, esse algo é Natalie Portman: sua performance inclui a personificação de Nina, uma bailarina talentosa e completamente travada (provável consequência da criação maluca dada por sua mãe sinistra, frustrada e invejosa) e cuja única ambição na vida é… ser perfeita. Também passa pelo evidente esforço (e impressionante resultado) em aprender balé: logo no início, vemos um close gigante de uma sapatilha de bailarina, equilibrado na ponta dos dedos, girando e girando, e a câmera vai subindo lentamente até revelar o rosto compenetrado de Natalie Portman -- e o cinema emite um “oh!” em uníssono. Finalmente, há o processo de transformação violenta por que Nina tem que passar para ganhar o papel principal no clássico Lago dos Cisnes: como uma equação matemática, ela é capaz de reproduzir com graça cada movimento imaginável por qualquer coreógafo -- e isso é suficiente para viver o “Cisne Branco” da peça -, mas o diretor da montagem tem sérias dúvidas de que ela seja capaz de transmitir a violência, a sexualidade e a imprevisibilidade que são o cerne do “Cisne Negro”, a outra metade de seu papel. É o processo de um personagem perdendo a sanidade, vivido por Portman de uma maneira tão intensa quanto a de DeNiro em Taxi Driver, e muito mais crível do que os atormentados personagens de DiCaprio em O Aviador, Ilha do Medo ou A Origem. Resumindo: todo o investimento que DiCaprio tem despendido ano após ano para ganhar seu Oscar, Natalie superou na primeira tentativa. É a virtual e merecedora vencedora do Oscar de melhor atriz deste ano.



O elenco de apoio também faz muito bem o seu papel, com destaque para uma Barbara Hershey desfigurada (e pensar que ela foi uma gata nos anos 70 e 80!) como a mãe de Nina e para Mila Kunis como a bailarina que faz sombra a Nina durante os preparativos da peça. Vincent Cassel também faz bem o papel do diretor da companhia, um cara com pinta de cafajeste chegado num assédio sexual, mas ao mesmo tempo um cara unicamente comprometido com sua arte -- e isso significa fazer Nina incorporar o maldito Cisne Negro.


Mas é muito mais interessante colher as influências de Aronofski: a obsessão por detalhes técnicos de Brian DePalma aparece na preparação das sapatilhas, nos alongamentos das meninas, nos dedos e unhas destruídos por vidas dedicadas ao balé. O clima de suspense de Hitchcock aparece nos ambientes sombrios e na assombração da personagem principal (a mãe? a rival? fantasmas?), que lembra muito a personagem também virginal de Joan Fontaine em Rebecca, a Mulher Inesquecível. A confusão entre realidade e delírio, que começa a assaltar Nina aos poucos, até chegarmos à completa confusão do que está ou não está acontecendo, bem, essa nós reconhecemos na atriz ingênua de Naomi Watts em Cidade dos Sonhos, de David Lynch. Por fim, há a saga da autodestruição mental dos personagens de Scorsese (como os já citados Taxi Driver, Ilha do Medo e O Aviador, mas também em Os Infiltrados, A Última Tentação de Cristo e tantos outros). Aranofski segue uma trilha nobre e perigosa de brincar com as marcas registradas de gênios do cinema, e se dá bem. Cisne Negro é um assombro.

Em última instância, Cisne Negro é um filme sobre arte -- ou melhor, sobre o grau de doação pessoal que um artista deve aplicar para fazer bem seu trabalho. É uma homenagem a maestros e compositores enlouquecidos, a poetas românticos tuberculosos, a cineastas trancafiados nas suas idiossincrasias, a astros do rock afogados em seu próprio vômito numa banheira. É um filme sobre artistas que trocam a sua sanidade -- às vezes, a própria vida -- pela arte.


E é por isso que, acima de tudo, Cisne Negro é um filme de Natalie Portman. Porque ela é a artista que aprendeu balé e que venceu suas reservas de “menina de ouro” de Hollywood para fazer uma personagem com densidade inédita em sua carreira; ela é a atriz que vai de virginal e frígida para o vulcão sexual em dois atos; sua arte se confunde com a da sua personagem, e durante duas horas, somos convidados a viver dentro da cabeça em ebulição de um grande artista, sendo consumidos pelos seus fantasmas e alçados ao momento mais glorioso que um filme nos proporciona em alguns anos: a cena em que Natalie/Nina se transforma, literalmente ou metaforicamente?, no Cisne Negro.

O que falta para Cisne Negro ser o melhor filme do ano e ganhar milhões e uma penca de Oscars: pouca coisa. Mas coisa importante. Seus truques de roteiro quebram um contrato de confiança que, segundo gente como Billy Wilder e Alfred Hitchcock, se estabelece entre um filme e seu espectador. E, uma vez que você o quebra (como naqueles filmes B em que o cara passa por poucas e boas para, no final, acordar de um sonho), a credibilidade vai embora. Isso não chega a acontecer totalmente neste inusitado thriller de balé, mas falta aquela qualidade simples e humana que sobrava no filme anterior de Aronofski (O Lutador, com Mickey Rourke), e também no filme de que ele abriu mão para fazer Cisne Negro: O Vencedor, que passou para as mãos de David O. Russel e que também concorre ao Oscar de melhor filme.

Balanço final: um filme único, impressionante e virtuoso, com o personagem e a atuação mais marcantes do ano, embalado num mix de suspense e tensão digno dos grandes mestres (DePalma, Hitchcock, Lynch, Scorsese). Quase uma obra-prima, e esse “quase” reforça ainda mais quão dolorida é a busca pela perfeição de Natalie Portman e de sua frágil Nina.

P.S.: sim, há duas cenas de Natalie Portman se masturbando (uma na cama, outra na banheira), e há a tão falada cena de Natalie e Mila Kunis se pegando, com direito a beijos, sexo oral e orgasmo. Mas, antes de sexy, essas cenas são sofridas; vemos uma moça frígida e traumatizada tentando gozar desesperadamente -- mais por ser “importante para a personagem” do que por tesão. Se a sua intenção de ver Cisne Negro está aí, garanto ao leitor que não vai se pagar de duas horas de balé e terror psicológico. Aviso dado.

Retirada do site da Revista VIP

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